XXIII do tempo comum
Festa da Natividade de Maria, Mãe do Senhor. A tradição franciscana recorda hoje a visita de paz que Francisco fez a Damieta, junto do sultão Malek-al-Kamel. Oração para que surjam operadores de paz e de diálogo.
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Homilia
Todos os peregrinos na Terra Santa estão cientes que ler o Evangelho naqueles lugares, facilita a compreensão de muitas das suas páginas devido aos contornos mais nítidos que elas assumem. O Evangelho deste domingo é uma delas. O evangelista Lucas apresenta-nos a viagem de Jesus para Jerusalém e podemos imaginar as estradas poeirentas e ensolaradas que atravessam, às vezes, um deserto pedregoso como o de Judá e que sobem para o monte Sião, meta ambicionada de qualquer pio hebreu. Jesus tinha acabado de sair da casa de um dos chefes dos fariseus, onde tinha participado num banquete, durante o qual não tinham faltado palavras decididas e incisivas. Retomava o caminho seguido por grandes multidões. Apercebendo-se de que muitos O seguiam, Jesus “voltou-Se” para os ver. Não é uma simples notícia de crónica. Naquele “voltar-Se” está encerrada toda a paixão de Jesus pelas multidões. Quantas vezes repetiu aos que O seguiam que não tinha vindo para Si mesmo, mas para eles! Desde então, Jesus não pára de “Se voltar” para as multidões cansadas deste mundo. As multidões de ontem e as de hoje. E entre elas, estamos também nós.
Com efeito, sempre que nos é anunciado o Evangelho, em particular, na liturgia eucarística dominical, verifica-se de novo esse “voltar-Se” de Jesus. A Sua Palavra é-nos dirigida; é proclamada para chegar e comover o nosso coração. O “voltar-Se” de Jesus é um voltar-se sério, como sério é o Seu amor. Ele assumiu a tal ponto a nossa causa que chegou a dar a Sua própria vida por nós. Mas pretende de nós a mesma seriedade em seguí-l’O: “Se alguém vem a Mim, e não dá mais preferência a Mim do que ao pai, à mãe, à mulher, aos filhos, aos irmãos, às irmãs, e até mesmo à sua própria vida, não pode ser meu discípulo” (v. 26). São as condições para seguir Jesus. Em nenhum outro ponto do Evangelho fala-se com tanta seriedade do seguir. Contrariamente ao trecho análogo de Mateus (10, 37), Lucas enumera detalhadamente as várias relações de parentela, parecendo não querer excluir ninguém; e todos submetem-se ao chocante verbo “odiar”. Para ser Meu discípulo, afirma Jesus, não é suficiente seguir-Me fisicamente e enfrentar também alguns sacrifícios; é necessário cortar nitidamente qualquer relação com o passado, até chegar a “odiar” pai, mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até nós mesmos! Não há dúvidas que se trata de palavras que à primeira vista são duríssimas, ao ponto de parecer impossível que tenham sido proferidas por Jesus. E, no entanto, estão aí, claras e inequívocas.
Não há dúvidas de que se trata de expressões que devem ser concebidas num contexto linguístico semítico que não possui o comparativo relativo, pelo que a essência da frase “amar menos” torna-se, quase automaticamente, “odiar”. Esta é a interpretação comum deste trecho. No entanto, a expressão “odiar” não deve ser neutralizada muito facilmente. A afirmação de Jesus é, e continua a ser, extremamente difícil em si mesma. Uma interpretação simplesmente ética da palavra (recusa do mandamento do amor, ou crítica em relação ao quarto mandamento do decálogo) não colhe a essência do pedido evangélico. Jesus e o Reino de Deus exigem a anulação de todos os ordenamentos de vida em vigor àquela data, para criar novos. É a partir da escolha radical por Jesus que devem renascer as relações, mesmo as familiares. Quem quiser amar Jesus com a mesma intensidade dos outros afectos, não amará seriamente nenhum dos dois. O carácter radical da escolha pelo Senhor é, portanto, a substância deste trecho evangélico. O versículo seguinte esclarece-o: “Quem não toma a sua cruz e não caminha atrás de Mim, não pode ser meu discípulo” (v. 27). Jesus pronuncia esta frase enquanto caminha para Jerusalém, onde O espera, precisamente, a cruz.
Pois bem, “caminhar atrás de Jesus” significa participar no Seu destino, ser uma só coisa com Ele. Não é fácil nem custa pouco. Ao empreender esta estrada, é necessário reflectir cuidadosamente e avaliar as próprias escolhas. Jesus esclarece este conceito com dois exemplos retirados da vida quotidiana. O homem que quer construir uma casa pesa cuidadosamente se as suas disponibilidades financeiras são suficientes para realizar o empreendimento; do mesmo modo um rei, antes de fazer uma guerra, avalia se com as suas forças poderá derrotar o inimigo, caso contrário, negoceia as condições de paz antes que seja demasiado tarde. Neste caso, não se trata de fazer cálculos como se tivéssemos uma alternativa em seguir o Senhor. Pelo contrário. Jesus termina afirmando: “Do mesmo modo, portanto, qualquer de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo” (v. 33). Parece que o único cálculo a fazer é, precisamente, o de renunciar a tudo para escolher Jesus e ser Seu discípulo. E isso não é um facto banal; é a coisa mais tremendamente séria da nossa vida.