II Domingo depois do Natal Leia mais
Homilia
A liturgia de hoje imerge-nos novamente no mistério do Natal. Para nós é fácil esquecer, sermos levados pelo ritmo da nossa vida e deixarmo-nos dominar por ele. E, se calhar, nestes dias, não estivemos tão atentos como Maria que, pelo contrário, “conservava no coração todas as coisas” que rodeavam Jesus. O “clima natalício”, infelizmente, nem sempre ajuda a compreender e, sobretudo, a viver o mistério do Natal. É o mistério que está na origem da nossa salvação e, no entanto, corremos o risco de o cobrir até o tornar ineficaz para a nossa vida e para a do mundo. Aconteceu a mesma coisa com os habitantes de Belém. Também hoje o verdadeiro Natal pode passar sem que a maioria das pessoas se aperceba. De resto, também na altura, o Natal não ocorreu no clamor da cidade, mas no silêncio. Escreve o livro da Sabedoria: “Enquanto um silêncio profundo envolvia todas as coisas e a noite estava no meio do seu curso, a tua Palavra todo-poderoso veio do alto do céu” (Sb 18, 14-15).
Jesus veio ao mundo como qualquer criança mas, no entanto, naquele nascimento, cumpria-se a mais elevada e incrível realidade: Deus continuava, ou melhor, aumentava o Seu amor por nós e pelo mundo. Após ter-nos amado com a Criação, amou-nos ainda mais radicalmente com a Redenção. Podemos dizer que é um movimento em descida; um movimento de total abaixamento de Deus na nossa direcção. Ele, só para estar connosco, não reteve nada de Si mesmo. É uma espécie de viagem de Deus fora de Si mesmo. Quanto mudaria a nossa vida se compreendêssemos uma mínima parte desse amor! O livro da Sabedoria e o Evangelho de João, apesar de apresentarem pontos de vista e acentos diferentes, descrevem esta misteriosa viagem de Deus que sai de Si mesmo para ir ao encontro dos homens. A Sabedoria que “sai da boca do Altíssimo” e que sustém todas as coisas, prepara o prólogo de João que afirma: “No começo a Palavra já existia e a Palavra estava voltada para Deus... Tudo foi feito por meio d’Ela e nada foi feito sem Ela”. Na plenitude da eternidade de Deus, ecoa a Palavra divina, criadora do mundo e reveladora do Seu grande amor pelos homens. É o momento da criação que podemos imaginar como a primeira etapa dessa viagem de Deus que sai de Si mesmo. Toda a Criação respira o amor do Senhor: “O céu manifesta a glória de Deus e o firmamento proclama a obra das suas mãos. O dia passa a mensagem a outro dia, a noite sussurra-a à outra noite”, canta o Salmo 19.
Mas a viagem continua, parece dizer o texto sapiencial. A Sapiência recebe uma ordem: “Instala-te em Jacob e toma Israel como tua herança... E deste modo me estabeleci em Sião. Ele fez-me habitar na cidade amada”. A pequena cidade de Sião e a modesta nação de Jacob tornam-se na casa de Deus na Terra. A imagem da tenda, evocadora do templo de Jerusalém, é utilizada também por João para descrever a última e a definitiva descida de Deus entre os homens. A Carta aos Hebreus sintetiza com eficácia esta companhia de Deus ao homem: “Nos tempos antigos, muitas vezes e de muitos modos, Deus falou aos antepassados por meio dos profetas, no período final em que estamos, falou-nos por meio do Filho” (Hb 1, 1-2). A Palavra que estava voltada para Deus entrou na nossa história, assumindo a nossa própria “carne”, vivendo os nossos dias. E fez tudo isso para nos amar.
Mas qual a razão desta viagem de Deus para nós? Podemos responder, dizendo que Deus tem uma grande ambição sobre nós: quer-nos santos e sem defeito. Aliás, escolheu-nos assim ainda antes da Criação. Escreve Paulo: “(o Pai) nos escolheu n’Ele (Cristo) antes de criar o mundo para que sejamos santos e sem defeito diante d’Ele, no amor”. É uma escolha elevada, absolutamente banal e modesta, que nos prende; é uma estreia absoluta que ultrapassa qualquer mérito nosso. O Pai pensando em Jesus, pensou também em nós, para que fossemos como Ele “santos e sem defeito”. Mas não se trata aqui simplesmente de uma bondade moral, isto é, de pensar em homens e mulheres que se comportam de modo correcto e honesto. Paulo descreve um homem novo, uma mulher nova, totalmente diferentes do homem velho, Adão, que confiava em si mesmo e nas suas forças, tanto é que chegou a pensar que poderia dispensar Deus. Tornar-se “santos e sem defeito” significa, antes de mais, “ser filhos”, entregar-se a Deus e não a nós mesmos, viver de Deus e da Sua vontade e não de nós mesmos e dos nossos caprichos. Filhos, precisamente, como Jesus. Natal, no seu significado mais verdadeiro, significa renascer, isto é, voltar a ser filhos de Deus, a sentirmo-nos profundamente tal. “Mas como é que se pode nascer de novo se já se é velho?” perguntamos com Nicodemos. A resposta é simples: escutando o Evangelho! Na noite de Natal e neste domingo, foi-nos aberta a primeira página do Evangelho, a do nascimento de Jesus. Podemos recomeçar a partir desta primeira página; daqui podemos começar a escrever de novo a nossa vida. E cresceremos, dia após dia, tal como crescia o Menino Jesus, se folhearmos página após página o pequeno livro do Evangelho, tentando pô-l’O em prática. No Natal a Palavra fez-se Homem. O Evangelho deve-se tornar na nossa vida, na nossa carne, ao longo de todos os nossos dias. No ano que se nos apresenta, de domingo a domingo, o Senhor, fielmente, dar-nos-á o Evangelho na Sagrada Liturgia. Não tenhamos medo de O acolher! Não tenhamos medo! Não nos roubará a vida, os afectos, a alegria. Antes pelo contrário, o Evangelho doa a quem O acolher, o amor, a paz e a alegria.