VI do tempo comum
Memória de Onésimo, escravo de Filémon, mas irmão na fé do apóstolo Paulo.
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Homilia
O trecho do Evangelho de Mateus que nos é anunciado neste domingo, continua a leitura do sermão da montanha com a secção chamada “discurso das antíteses”, onde se levanta o decisivo problema da relação entre Jesus e a Lei, entre o Evangelho e as normas éticas. Com uma frase que como um refrão escande os versículos 17-37, Jesus parece assumir uma drástica posição contra a Lei: “Ouvistes o que foi dito... Eu, porém, digo-vos...”. Na verdade, acrescenta logo a seguir: “Não penseis que Eu vim abolir a Lei, mas dar-lhe pleno cumprimento”. E, é precisamente o “cumprimento” da Lei, o cerne deste trecho evangélico. Para Jesus, cumprir a Lei, significa tornar-se “perfeitos como é perfeito o vosso Pai que está no Céu” (v. 48). Tendo presente este exigente objectivo, não nos admira escutar a admoestação que abre a perícope de hoje: “se a vossa justiça não superar a dos doutores da Lei e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus”. Isto é, ser bons como os fariseus ou não fazer nada é exactamente a mesma coisa. Jesus considera a justiça dos fariseus tão pequena que nem sequer é suficiente para entrar na salvação. É uma sentença duríssima, que não pode não nos deixar surpreendidos se tivermos em conta que o farisaísmo do tempo era considerado pelos Vip da altura absolutamente respeitável e respeitado.
E, no entanto, a justiça dos discípulos do Evangelho deve ser superior, e muito, à dos fariseus. Jesus não pretende falar aqui de uma maior quantidade de preceitos a observar. Numa outra parte do Evangelho censura precisamente por isso os fariseus: “Ai de vós também, especialistas em leis, porque impondes sobre os homens cargas insuportáveis” (Lc 11, 46). Ele refere-se a uma justiça diferente. É uma justiça que nem sequer deve ser confundida com a do plano legislativo. A justiça de que Jesus fala deve ser posta em relação com a acção de Deus que não se comporta como um impassível calculador que pondera o dar e o haver, as culpas e os méritos. Deus age com um coração grande e misericordioso. Podemos dizer que a justiça de Deus, consiste em ir além de qualquer limite, mesmo o da lei. O problema não está na relação entre preceito e cumprimento, mas entre amor e indiferença ou, se quisermos, entre calor e frieza. Na verdade, a simples observância das leis, que é simplesmente uma espécie de primeiro degrau na escala da convivência não é uma brincadeira mas a própria vida da comunidade.
O primeiro tema que Jesus considera é tirado do quinto mandamento: “Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás; quem matar será condenado pelo tribunal. Eu, porém, digo-vos: todo aquele que fica com raiva do seu irmão, torna-se réu perante o tribunal”. Certamente, não se trata de uma nova casuística (com as outras duas escansões: quem diz “imbecil” ou “idiota” ao próprio irmão) ou de uma nova praxe jurídica, provavelmente mais severa da precedente, mas de um novo modo de entender e de praticar o mandamento “não matarás”. Estão em jogo as relações entre nós e a relação com Deus. Jesus quer dizer que elas são tão importantes que decidem o próprio destino definitivo. É uma maneira diferente para dizer que o amor, entre nós e com Deus, representa o cumprimento da Lei. Neste sentido, trata-se de passar, mesmo verbalmente, de um preceito em negativo para a afirmação da primazia do amor. No entanto, soa muito longe do Evangelho aquele provérbio que ouvimos repetir muitas vezes: “Não fiz nada a ninguém; estou com a consciência tranquila”. Não se trata tanto de não fazer o mal, quanto de fazer o bem. É o amor, a justiça pedida aos discípulos do Evangelho.
Jesus chega a dizer: “Portanto, se fores até ao altar para levares a tua oferta, e aí te lembrares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a oferta aí diante do altar e vai primeiro fazer as pazes com o teu irmão; depois, volta para apresentar a oferta”. Não diz “se tu tens alguma coisa contra o teu irmão”, mas “se ele tem alguma coisa contra ti”, para indicar que devemos procurar a reconciliação mesmo se a culpa é do outro e não nossa. Pois bem, Jesus chega até mesmo a pedir que se interrompa o acto supremo do culto, para restabelecer a harmonia do perdão e da amizade. A “misericórdia” vale bem mais do que o “sacrifício”. O culto, entendido como sinal da relação com Deus, não pode prescindir de uma relação humanamente séria e amigável entre os homens. É neste contexto que deve ser entendida também a seguinte afirmação: “Ouvistes o que foi dito: não cometerás adultério; todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la, já cometeu adultério com ela no coração”.
A seguir, vem a questão do juramento: “Ouvistes também o que foi dito aos antigos: Não jurarás falso... Eu, porém, digo-vos: não jureis de modo algum”. A proposta evangélica exclui qualquer forma de juramento na sua dúplice valência, religiosa e social. O juramento é visto como um abuso da autoridade de Deus, chamado a cobrir a falta de verdade das palavras e dos compromissos humanos. O Senhor criou o homem com a dignidade da palavra (infelizmente, apesar de motivos históricos o terem solicitado, a prática cristã chegou até a instituir canonicamente o juramento). Jesus diz: “Diz apenas: sim’ quando é sim’ e não’, quando é não’; o que disseres para além disto vem do Maligno”. Jesus acredita deveras na palavra dos homens. Assim termina o trecho evangélico deste domingo. Ele leva-nos para o princípio da palavra evangélica, na sua novidade e na sua força. Quem chegou a ousar pronunciar palavras como estas? O apóstolo Paulo afirma que se trata de uma “sabedoria que não foi dada por este mundo” e acrescenta: “o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o coração do homem não percebeu, foi isso que Deus preparou para aqueles que O amam. Deus, porém, revelou-o a nós pelo Espírito” (1Cor 2, 9). É a entrega aos crentes de uma nova “lei”, não feita por normas ou por disposições jurídicas, mas por um coração novo, por um espírito novo.