XXVI do tempo comum Leia mais
Homilia
O Evangelho de Marcos apresenta-nos Jesus que continua a falar aos discípulos, enquanto prossegue o Seu caminho para Jerusalém. Ainda está vivo o episódio do domingo passado quando lhes tinha perguntado sobre o que é que discutiam ao longo do caminho, depois do anúncio da Paixão. Eles não responderam nada porque estavam concentrados na discussão sobre quem deveria ser o primeiro. Que tristeza para Jesus! Quer-lhes confiar a Sua angústia, mas eles não O tomaram em consideração. No trecho deste domingo, João, um dos doze que se tinha calado, desta vez enche-se de coragem e com tom seguro diz: “Mestre, vimos um homem que expulsa demónios em teu nome; mas nós proibimos-lho, porque ele não nos segue”. Pobre João, não entendeu nada! E Jesus, mais uma vez, reúne todos e, com paciência, explica-lhes e corrige-os ensinando-lhes o modo evangélico de compreender e de julgar a vida. Pois bem, é precisamente o que sucede todos os domingos quando o Senhor reúne os discípulos e fala-lhes ao coração semeando a boa semente e arrancando as ervas daninhas que envenenam a existência deles e a dos outros.
Frequentemente também nós raciocinamos como João. Com efeito, não é este o modo de defender a verdade. Normalmente essa atitude mira a defender os próprios privilégios, as próprias posições, as próprias convicções, não olhando para a substância das coisas que é a salvação das pessoas. Não se defende a verdade salvaguardando os próprios privilégios passando, se necessário, por cima das pessoas. No livro dos Números, a demonstrar como uma mentalidade do género está radicada no coração dos homens, é narrado um episódio análogo que ocorreu no início do caminho do povo de Israel. Josué é informado de que dois homens quaisquer que não pertenciam ao grupo dos setenta responsáveis de Israel e sem terem um mandato apropriado, começaram a profetizar. A sua reacção é imediata. Vai ter a correr com Moisés, irritado e preocupado, para lhe pedir que impeça aos dois que não pertencem ao grupo escolhido, de falar. Moisés responde ao jovem e zeloso chefe: “Estás com ciúme por mim? Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta e recebesse o espírito do Senhor!” (Nm 11, 29).
O que preocupa Josué, bem como João e os outros discípulos (incluindo muitos de nós), não é a cura dos doentes e a libertação dos possuídos pelos espíritos, mas o próprio grupo e a própria instituição, ou melhor, o próprio interesse, o próprio poder assegurado no grupo e na instituição. Não é este o pensamento de Jesus. Bem mais largo do que o coração dos discípulos é o Seu coração e ilimitada é a Sua misericórdia para com os fracos e os pobres. Com firmeza, Jesus responde a João e aos outros: “Não lho proibais, pois ninguém faz um milagre em meu nome e depois vai dizer mal de Mim: quem não está contra nós está a nosso favor”. O bem, onde quer que esteja e por quem quer que seja feito, vem sempre de Deus. Quem ajuda os necessitados, quem sustém os pobres, quem conforta os desesperados, quem acolhe, quem promove a amizade, quem faz de tudo em prol da paz, quem está pronto para o perdão, essa pessoa vem sempre de Deus.
Deus rompe qualquer esquema e está presente onde quer que haja amor, bondade, paz e misericórdia. Deus está naquele sedento a quem é dado um copo de água, naquele esfomeado a quem é oferecido um pedaço de pão, naquele desesperado a quem é dada uma palavra de amor. A Igreja guarda esta verdade evangélica e apesar de não ser a única detentora, deve praticá-la e proclamá-la com força, em prol da clareza da dádiva que Deus Lhe deu. Seria, deveras triste restringir a força milagrosa da misericórdia de Deus à estrita medida dos nossos esquemas e das nossas lógicas. Não dizia por acaso Jesus: “O vento sopra onde quer, ouves o barulho, mas não sabes de onde vem nem para onde vai” (Jo 3, 8)? O espírito de Deus é deveras grande e infinito. Felizes nós se O soubermos reconhecer e acolher! Ou melhor, afirma o Apóstolo, devemos estar atentos a não contristá-l’O. Eis porque são ridículas certas disputas sobre esta ou aquela experiência só porque não entra no nosso esquema lógico de interpretação!
Precisamos de uma visão larga que nos faça intuir a acção do Espírito de Deus no mundo. Não nos devemos entristecer, como o apóstolo João, se vemos que outras pessoas que não pertencem ao nosso grupo, expulsam os demónios. Jesus alegrava-se ao ver que muitos se curavam e voltavam a ficar bem de saúde: a alegria do Senhor é o homem vivo, está escrito. Grande foi a Sua alegria na Criação, desde o primeiro dia até ao fim da Sua obra quando criou o homem e a mulher. O autor bíblico não pode fazer outra coisa senão anotar: “Deus viu que era bom”. Também esta deve ser a alegria do discípulo. É verdade, devemo-nos todos alegrar pelo bem que vemos no mundo, independentemente de quem o realize e onde é realizado. O bem nasce sempre de Deus que é “fonte de todo o bem” como canta a Liturgia.
As palavras duríssimas que Jesus pronuncia na segunda parte do trecho evangélico evidenciam, com uma linguagem hiperbólica, qual é o caminho do discípulo: “Se a tua mão é ocasião de escândalo para ti, corta-a: é melhor entrares na vida sem uma das mãos, do que ter as duas mãos e ir para o inferno, onde o fogo nunca se apaga”. Ser ocasião de “escândalo” significa fazer tropeçar e cair ou, de qualquer modo, não ajudar o mais fraco e o necessitado de conforto. Nós pensamos que a felicidade esteja em nos conservarmos a nós mesmos, em caminharmos incólumes neste mundo, em nunca perder nada. Pelo contrário, diz Jesus, a felicidade está em nos oferecermos pelo Evangelho, em darmos a própria vida pelo próximo. Recordemos a frase de Jesus referida por Paulo: “Há mais felicidade em dar do que em receber” (Act 20, 35). E é por isso que vale a pena fazermos sacrifícios. O amor pelo próximo, de resto, pede sempre um sacrifício, exige sempre alguma renúncia. Não se trata, obviamente, de mutilações mas de transformações que devem ser introduzidas nas atitudes e no coração. Na verdade, normalmente temos os olhos postos só em nós mesmos; as mãos activas só para as nossas coisas; os pés movem-se só para os nossos interesses. Renunciemos a um olho sobre nós e seremos, certamente, bem mais felizes. Usemos pelo menos uma mão para ajudar quem sofre e sentiremos a mesma alegria de Jesus. Dirijamos os nossos pés para o caminho do Evangelho e seremos testemunhas do amor de Deus. Assim compreenderemos o que Jesus disse: “Quem quiser salvar a vida vai perdê-la; mas quem perde a vida por minha causa, salvá-la-á”.