XXII do tempo comum Leia mais
Homilia
"Religião pura e sem mancha diante de Deus, nosso Pai, é esta: socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, e manter-se livre da corrupção do mundo". Estas palavras tiradas da carta do apóstolo Tiago, de quem hoje iniciamos a leitura contínua, vêm ao nosso encontro, precisamente quando está para acabar, para muitos, o período das férias e recomeçam as actividades habituais. As palavras do apóstolo inserem-se na dimensão normal da vida: não são exortações para os dias de festa ou para momentos extraordinários; referem-se aos dias úteis de todas as semanas. Eis porque são uma dádiva para este tempo. Podemos dizer que são palavras boas que o Senhor nos dirige no início deste novo tempo para que nos possamos manter livres da corrupção deste mundo e compreender qual é o culto verdadeiramente apreciado por Deus. De um certo modo, elas introduzem-nos no Evangelho que é anunciado neste domingo.
Jesus ainda se encontra na Galileia, numa zona longe da capital e do centro da religião. Aqui, tinha iniciado a Sua missão pública, anunciando aos pobres e aos humildes a chegada do Reino de Deus. Alguns fariseus e doutores da Lei vieram de Jerusalém para discutirem com Ele. A Sua fama tinha, evidentemente, chegado até à capital e eles vinham, provavelmente, não para O acusar mas, simplesmente, para discutirem com Ele. Com efeito, Jesus ainda estava no início da Sua pregação e ainda muito longe de Jerusalém para que fosse necessária uma urgente intervenção de oposição. Todos sabem que muitos dos fariseus respeitavam não só a Lei (a Torah) mas também a tradição que ao longo dos anos e dos séculos os sábios de Israel tinham acrescentado: estas são, precisamente, o que o evangelista chama "as tradições dos antigos". Com tais prescrições rituais, queria-se circundar de respeito, concreto e minucioso, o mistério de Deus. Devemos, no entanto dizer, que não se devem desprezar essas atitudes. Se pensarmos nas nossas liturgias eucarísticas dominicais, devemos mas é censurar uma certa superficialidade ao se tratar das coisas de Deus. João Paulo II, na encíclica sobre a Eucaristia, chama a atenção sobre o decoro da celebração. A falta de respeito pelo rito manifesta uma falta do sentido de Deus acompanhado por um forte sentido de si mesmo. É óbvio que se as prescrições rituais não vivem no âmbito de uma relação real e autêntica com o mistério que se celebra, tornam-se, precisamente, rituais, isto é, gestos sem significado e, sobretudo, sem coração, exteriores e frios.
Portanto, os fariseus, ao verem que os discípulos de Jesus não respeitam as práticas de purificação antes de comerem, sentem-se no pleno direito de perguntarem ao Mestre: "Porque é que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, pois comem pão sem lavar as mãos?". Obviamente, a censura refere-se não à transgressão de uma norma higiénica, mas a uma prescrição ritual (as abluções originariamente eram requeridas só aos sacerdotes, mas os fariseus - desejando um povo perfeito - alargaram-nas para todos). Jesus, retomando as palavras de Isaías (29, 13), estigmatiza a grosseria de uma atitude puramente exterior: "Este povo - responde - honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim. Não adianta prestarem-Me culto, porque ensinam preceitos humanos". É a lamentação de Deus por um culto puramente exterior. Ele não sabe o que fazer de um culto do género. E Jesus continua: "Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens". Não se trata de condenar as práticas rituais nem de favorecer uma religião intimista e individualista. E nem sequer se deseja atenuar o respeito da Lei. Jesus conhece muito bem o que Moisés ordenou ao povo de Israel: "Agora, Israel, ouve os estatutos e normas que eu hoje vos ensino a praticar, a fim de que vivais e chegueis a possuir a terra que o Senhor, o Deus dos vossos antepassados, vos vai dar. Não acrescenteis nada ao que vos ordeno, nem retireis coisa nenhuma" (Dt 4, 1-2).
Jesus não exorta absolutamente a desobedecer à Lei. O que Ele condena é o afastamento do coração dos homens de Deus. É o relacionamento pessoal entre o homem e Deus que é posto em causa por Jesus. De resto, isso já estava claro no Primeiro Testamento. Moisés estava bem ciente disso, tanto é verdade que se questionou de modo retórico: "Que grande nação tem um Deus tão próximo, como o Senhor nosso Deus, todas as vezes que O invocamos? Que grande nação tem estatutos e normas tão justas como toda esta lei que vos proponho hoje?". Se Deus está assim tão próximo é, na verdade, inadmissível que os homens se dirijam a Ele só com gestos exteriores sem que o coração apresente um mínimo de vibração de afecto. Neste caso, os ritos e as palavras não servem para nada. Pois bem, Jesus, referindo-se à crítica sobre a falta das abluções, esclarece o que é verdadeiramente impuro, isto é, inadequado a Deus. Há uma primeira afirmação muito clara: nenhuma das coisas criadas é inadequada a Deus; portanto, nada é impuro. Na verdade, a impureza não está nas coisas, mas no coração do homem: "é de dentro do coração da pessoa que saem as más intenções: imoralidade, roubos, crimes, adultérios, ambições sem limite, maldades, malícia, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo", afirma o Profeta de Nazaré. Com essas afirmações, Jesus esclarece que o mal não nasce por acaso, como se fosse o fruto de um destino cego. O mal tem o seu próprio terreno que é o coração. E tem também os seus agricultores: os homens. Cada um é cultivador, muitas vezes atento, no terreno do próprio coração de pequenas ou grandes quantidades de ervas daninhas que envenenam a nossa e a vida dos outros.
Portanto, nós somos responsáveis pela amargura deste mundo; quem mais, quem menos; ninguém está excluído. É, portanto, do coração que é preciso partir para extirpar o mal deste mundo. Demasiadas vezes descuramos o coração pensando que o que conta é mudar as estruturas ou mudar as leis. Mas o ponto fulcral da luta contra o mal é o coração. É no coração que se combatem as batalhas para mudar de verdade o mundo, para estarmos todos melhor. E é, portanto, sempre no coração que devem ser plantadas as ervas boas da solidariedade, da amizade, da paciência, da humildade, da piedade, da misericórdia, do perdão. O caminho para esta plantação boa está indicado pelo Evangelho: lembramos a famosa parábola do semeador que, logo de manhã, saiu para semear. Ainda hoje, fiel e generosamente, aquele semeador sai e semeia com abundância a sua semente no coração dos homens. A nós cabe a função de acolher aquela Palavra e fazê-la crescer para que não só não seja sufocada pelas nossas pedantices, mas também para que possa dar frutos. E o apóstolo Tiago, quase que a comentar as palavras de Jesus, afirma: "recebei com docilidade a Palavra que vos foi plantada no coração e que pode salvar-vos. Sede praticantes da Palavra, e não apenas ouvintes, iludindo-vos a vós mesmos".