XXXII do tempo comum
Recordação de São Leão Magno, bispo de Roma que guiou a Igreja em tempos difíceis.
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Homilia
Depois da festa dos santos e da recordação de todos os que morreram (trata-se de dois aspectos da mesma memória), a liturgia deste domingo insiste mais uma vez sobre o mistério da vida para além da morte. Não há dúvidas que a pergunta sobre o além é uma daquelas questões que atravessa profundamente toda a vida humana. Os saduceus, um movimento religioso de intelectuais, tinham resolvido o problema negando a realidade da ressurreição dos mortos. De resto, sobre este tema, o Antigo Testamento tinha chegado só muito mais tarde a uma certeza (aparecerá clara no livro dos Macabeus, como lemos na primeira leitura). O episódio evangélico (Lc 20, 27-38) refere-se à discussão em que os saduceus tentam demonstrar a Jesus que a fé na ressurreição dos mortos, partilhada também pelos fariseus, é inaceitável porque leva a consequências ridículas. E citam o hipotético caso de uma mulher que, na base da lei do levirato estabelecida por Moisés, teve que se casar sucessivamente com sete irmãos, que morreram um a seguir ao outro, sem que nenhum deles lhe tivesse dado um filho. No fim, também a mulher morre. “E agora? Na ressurreição, - perguntam os saduceus a Jesus - de qual deles será ela esposa?” (cfr. v. 33). É óbvio o sentido ridículo da eventual resposta de Jesus. Hoje não fazemos este tipo de perguntas; somos um pouco mais espertos. Na melhor das hipóteses calamo-nos sobre o que não vemos nem conhecemos. O filósofo Wittgenstein como que recolhendo todas essas perplexidades, sugere um princípio sensato: “Daquilo que não se pode falar, deve-se calar”; por outras palavras: da vida para além da morte, quer exista, quer não exista, como é e como não é, é bom que os homens falem o menos possível. Na verdade, ninguém tem experiência directa. Acho que nós, cristãos, apesar de não estarmos de acordo com este filósofo, desconfiamos, no entanto, daquelas visões fáceis que aqui e ali são reivindicadas. Se falamos da vida para além da morte, não o fazemos a partir da nossa experiência, mais ou menos fantasiosa, mas apenas a partir da Palavra de Deus. Essa Palavra que “no começo estava voltada para Deus” (Jo 1, 1) e que habitou entre nós, abre aos olhos da nossa mente e do nosso coração o véu que nos separa da eternidade. É óbvio que na medida em que a “Palavra” se aproxima dos homens assume uma veste compreensível, para que possamos, pelo menos, entrever um pouco o mistério que Ela esconde. O apóstolo Paulo escreve: “Agora vemos como em espelho e de maneira confusa; mas depois veremos face a face” (1Cor 13, 12). Se tivesse que procurar um exemplo para tentar exprimir a relação entre o nosso mundo e o eterno, escolheria a vida da criança no seio da mãe e a sua vida quando sai do seio materno. O que é que a criança sabe da vida, enquanto está no seio materno? Quase nada. Do mesmo modo, que podemos nós dizer da vida para além da morte? Nada, se a Palavra de Deus não vier ao nosso encontro. Pois bem, na resposta aos saduceus, Jesus abre um pouco o véu: “Nesta vida, os homens e as mulheres casam-se, mas os que Deus julgar dignos da ressurreição dos mortos e de participar na vida futura, não se casarão, porque já não podem morrer, pois serão como os anjos; e serão filhos de Deus, porque ressuscitaram” (vv. 34-36). As características do mundo dos ressuscitados são opostas às do mundo actual, porque com a ressurreição, a vida é contínua, não tem princípio nem fim, já não é necessário o casamento com vista à procriação, assim como a morte não é possível. É uma vida plena, na comunhão afectuosa com Deus e entre nós, sem lágrimas, amarguras e apoquentações. Mas a oposição entre “os filhos deste mundo” e “os filhos da ressurreição” não é relegada apenas para depois da morte; se nós somos filhos da ressurreição desde já, a oposição realiza-se já no nosso tempo; não é outra coisa senão a diversidade entre o mundo e o Evangelho, entre a vida segundo a Palavra de Deus e a vida segundo as nossas mesquinhas tradições. Por outras palavras, podemos dizer que o Paraíso começa já nesta Terra, quando tentamos viver segundo o Evangelho. A “Palavra de Deus” é a boa levedura que fermenta a massa da nossa vida, é a semente de imortalidade e de incorruptibilidade deposto na pequena terra do nosso coração. Cabe-nos a nós, desde já, acolher a levedura e deixá-la fermentar, acolher a semente e deixá-la crescer. É assim que o Paraíso começa, desde já. Pelo contrário, na falta, ou pior ainda, na recusa do Evangelho, construiremos com as nossas mãos o inferno para nós e para os outros. Onde o Evangelho cria raízes e emerge um sinal de amor, mesmo pequeno, nasce a vida eterna. Por essa razão, na profissão de fé dizemos “creio na vida eterna”, isto é, na vida que não acaba e não “creio no além”. Podemos viver o Paraíso desde já.