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Homilia
Para além da fuga para o Egipto e do trecho que nos é proposto este domingo, o Evangelho não narra mais nenhuma deslocação de Jesus fora da Palestina. Portanto, Jesus, tal como refere Mateus, da região da Galileia perto do lago Genezaret “retirou-Se” em direcção de Tiro e de Sidónia (o actual Líbano), antiga cidade fenícia, cidade marítima e comercial, rica e desenvolvida, mas também cheia de egoísmo e de injustiça, principalmente para com os pobres. Não é por acaso que os profetas do Antigo Testamento proclamam várias profecias de desventura para essas cidades. Isaías dirige-se a Sidónia e diz-lhe: “Envergonha-te!” (Is 23, 4) e Ezequiel preanuncia a Tiro a sua destruição devido ao orgulho que possui (Ez 26, 1-21; 27,1, 1-36). E, no entanto, o pecado de quem não aceita a pregação de Jesus é estigmatizado como um pecado muito maior do que o cometido por Tiro e Sidónia. Estas, na verdade, - diz Jesus - se tivessem recebido a pregação do Evangelho ter-se-iam convertido. Receberão, portanto, um melhor tratamento no dia do juízo: “Ai de ti, Betsaida. Porque se em Tiro e Sidónia tivessem sido realizados os milagres que foram feitos no meio de vós, há muito tempo que elas teriam feito penitência, vestindo-se de cilício e cobrindo-se de cinza”.
Jesus dirige-se para essa região e logo aparece uma mulher; Mateus identifica-a como “cananeia” (no trecho paralelo de Marcos é indicada como “Fenícia da Síria”). É uma mulher pagã que se dirige a Jesus. Certamente terá ouvido falar muito bem deste Jovem Profeta e, provavelmente, não quer perder a ocasião para uma intervenção prodigiosa sobre a filha. Aproxima-se de Jesus durante o caminho e invoca a Sua ajuda. A sua filha está possuída por um “demónio” (era uma situação já por si dolorosa, mas que se agravava também devido ao estigma social) e pede a Jesus que a cure. Poderia ser a sua última ocasião. Por isso, não deixa de gritar por ajuda, mesmo diante da atitude indisponível de Jesus. O evangelista nota: “Mas Ele nem lhe deu resposta”. A mulher insiste. A sua insistência provoca a intervenção dos discípulos. Tal como no episódio da multiplicação dos pães, eles desejariam que Jesus a mandasse embora: “Manda embora essa mulher”, sugerem-Lhe. Mas Jesus responde dizendo que a Sua missão se limita a Israel.
Aquela mulher, embora tenha recebido uma explícita recusa, insiste uma segunda vez e com palavras essenciais, simples, mas dramáticas, como dramática é a desgraça da própria filha: “Senhor, ajuda-me” (são as mesmas palavras de Pedro, enquanto afundava no lago). E Jesus, inacreditavelmente, responde com uma inaudita dureza: “Não está certo tirar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos!” Já no discurso da montanha tinha dito uma coisa do género: “Não deis aos cães o que é santo, nem atireis pérolas aos porcos” (Mt 7, 6). Com o apelativo de “cães”, na tradição bíblica, tomada dos textos judaicos, alude-se aos adversários, aos pecadores e aos povos pagãos idólatras.
Mas a mulher desfruta à letra justamente essa expressão de Jesus e diz-lhe (podemos traduzir deste modo a frase): “Sim, Senhor, é verdade; mas também os cachorrinhos comem as migalhas que caem da mesa dos seus donos!”. Até mesmo os cães, os excluídos, como o pobre Lázaro, contentam-se, ou melhor, contentar-se-iam de migalhas se lhas deitassem. Esta mulher pagã ousa resistir a Jesus; de um certo modo trava uma luta com Ele. Podemos dizer que a sua confiança naquele Profeta é maior do que a resistência do próprio Profeta. E por isso Jesus responde, por fim, com uma expressão invulgar nos Evangelhos: “é grande a tua fé”. Jesus fez o mesmo elogio ao centurião e os dois eram pagãos. Mais uma vez, o Evangelho propõe-nos a essencialidade da confiança em Deus que liberta da angústia de se confiar só em si mesmo e nos homens. A fé desta mulher convenceu Jesus a curar. Escreve o evangelista: “Jesus disse-lhe: Mulher, é grande a tua fé! Seja feito como desejas’. E desde aquele momento a filha dela ficou curada”. A uma fé como esta, nem sequer Deus pode resistir.