XV do tempo comum Leia mais
Homilia
“Jesus chamou os Doze discípulos e começou a enviá-los dois a dois”. Começa assim o trecho do Evangelho de Marcos que escutámos neste domingo. Jesus chamou-os e mandou-os. Podemos dizer que nestes dois verbos (chamar e mandar) está contida toda a identidade do discípulo e da comunidade cristã. Na verdade, estas palavras não estão reservadas a determinados grupos ou a pessoas privilegiadas. Todos os cristãos são chamados a estarem com Jesus e a serem enviados para proclamarem o Evangelho ao mundo. O Concílio Vaticano II reafirma claramente esta missão confiada a toda a Igreja: “A Igreja peregrina é por própria natureza missionária... e todo o discípulo de Cristo tem o dever de divulgar, por quanto lhe seja possível, a fé”. O cristão, portanto, é antes de mais, um chamado, um convocado por Deus. Propriamente falando, não nos tornamos cristãos por escolha autónoma; tornamo-nos em resposta (obviamente livre) de um chamamento que nos precede. É verdade, há um amor que está antes da nossa resposta. Paulo, no esplêndido início da Epístola aos Efésios, recorda-nos isso: “Ele (o Pai) nos escolheu em Cristo antes de criar o mundo para que sejamos santos e sem defeito diante d’Ele, no amor Ele nos predestinou para sermos seus filhos adoptivos por meio de Jesus Cristo, conforme a benevolência da sua vontade” (Ef 1, 4-6).
Toda a tradição do Antigo Testamento, a partir de Abraão, coloca Deus na origem de todo o chamamento; a iniciativa de começar a história da salvação do povo de Israel é toda do Senhor. “Abraão, chamado por Deus, obedeceu”, escreve o autor da Epístola aos Hebreus (11, 8), indicando a todos os cristãos o paradigma da fé. Nos relatos das vocações proféticas emerge sempre a primazia do chamamento divino. Emblemática é a história de Amós. Não foi ele quem escolheu. E, nem sequer foi ele a ir. O Senhor tomou-o (“O Senhor é que pegou em mim quando eu andava atrás do rebanho”) e projectou-o num áspero confronto com as injustiças do poder político. Chegou até a ter um recontro com as frias considerações do “capelão da corte”, o sacerdote Amasias, que o exortava, como muitas vezes sucede, a uma egoística prudência. Amós responde ao sacerdote que na origem das suas palavras não há uma escolha pessoal ligada a particulares perspectivas. Foi Deus quem o obrigou à missão profética: “Eu não sou profeta, nem discípulo de profeta; sou criador de gado e cultivador de sicómoros; o Senhor é que pegou em mim quando eu andava atrás do rebanho, e me ordenou: Vai profetizar ao meu povo Israel’” (Am 7, 14-15). Podemos dizer que cada um de nós era (e muitas vezes ainda o é) cultivador de sicómoros. E, muitas vezes, apesar do chamamento que Deus nos faz todos os dias, todos os domingos, continuamos a cultivar os nossos pessoais sicómoros.
Mas o Senhor continua a chamar-nos e não uma só vez; arrancando-nos de um destino triste e insonso. O chamamento é sempre para exercer o serviço de proclamar, com as palavras e com a vida, o Evangelho de Jesus até aos extremos confins da Terra. E, aqui cada um de nós pode encontrar a própria santidade. Todos os chamamentos do Senhor são um convite para acolher a missão que nos leva para além de nós mesmos, para além dos confins que cada um de nós traça para a própria vida. Na verdade, é natural que cada um de nós trace um limite, possivelmente claro e definitivo, entre nós e os outros, entre o que consideramos possível fazer e o que pensamos que não o seja. Este instinto de traçar confins nasce do medo: queremos estar tranquilos e seguros, evitando o desconhecido e tudo o que não nos é familiar. Reforçam-se, deste modo, os confins que dividem os homens entre si: os da cultura e das afinidades, da idade e da classe social, da nação e da pertença. E outros ainda. São todos confins que separam uns dos outros e, muitas vezes, com violência, injustiça e, nalguns casos, também com a guerra. E, de qualquer modo, induzem sempre a sentir o próximo como um adversário, como um inimigo. Cada um de nós procura estar só com os próprios semelhantes, isto é, consigo mesmo.
Para Jesus, não é assim. Ele chegou até a deixar o Céu para vir estar entre nós e não porque fôssemos justos, mas porque éramos pecadores. Por isso, Jesus não pode aceitar nem limites nem particularismos. De resto, também o Pai que está nos Céus “faz nascer o sol sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos” (Mt 5, 45). O horizonte de Jesus é todo o mundo. Ninguém está alheio às Suas preocupações, nem sequer o pior dos inimigos. Para o Senhor, todos devem ser amados e salvos. Ele foi o primeiro a ser mandado e obedeceu: “Jesus percorria todas as cidades e povoados, ensinando nas suas sinagogas, pregando a Boa Notícia do Reino, e curando toda a espécie de doenças e enfermidades”, escreve Mateus (9, 35). Ainda hoje, Jesus não deixa de Se comover sobre as multidões cansadas e exaustas deste mundo, em particular as mais pobres que vagueiam como ovelhas sem pastor. E manda os Seus, “dois a dois”, para que continuem a Sua obra de comunicação do Evangelho. Os discípulos de Jesus devem ser livres no espírito e universais no coração, sobretudo hoje que as distâncias entre as pessoas e os países se reduzem como nunca e, no entanto, crescem rapidamente novos muros e novos confins, reclamados pelo individualismo e pelo particularismo de pessoas e de grupos, de etnias e de nações. Tal como Jesus não veio para Se salvar a Si mesmo, do mesmo modo, os cristãos não vivem para si mesmo, mas para salvar o próximo.
Jesus exorta os Seus discípulos, os de ontem e os de hoje, a não levarem nada consigo, nem pão, nem sacola, nem dinheiro (cada um de nós deve questionar-se sobre o significado do pão, da sacola e do dinheiro hoje). Eles, apenas com o bastão do Evangelho e o calçado da misericórdia, devem percorrer os caminhos dos homens proclamando a conversão do coração e curando doenças e enfermidades. Para entrar nas casas dos homens, isto é, na morada mais íntima e delicada que é o coração dos homens, não são precisas armas particulares. Os discípulos, indefesos e pobres, devem ir dois a dois para que a primeira pregação deles seja o exemplo do recíproco amor. De resto, Jesus tinha dito: “Todos reconhecerão que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns para com os outros”. Cheios, pois, só da misericórdia de Deus e do Evangelho, os cristãos poderão abater os muros de divisão e libertar o coração dos homens dos limites e dos pesos que os oprimem. Não podemos recuar perante essa tarefa, fascinante e terrível. E juntamente com os discípulos santos, dizemos: “Aqui estou. Envia-me!” (Is 6, 8).