PAZ

"Hoje precisamos da ousadia da paz, que nos leva para além do muro do impossível diante do qual parámos": Andrea Riccardi no Encontro Internacional pela Paz

Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Sant'Egidio, por ocasião da assembleia de abertura de "A Ousadia da Paz. Religiões e culturas em diálogo", que se realizou em Berlim de 10 a 12 de setembro, sublinhou o significado do título do 37º Encontro Internacional para a Paz no "espírito de Assis".

Senhor Presidente da República Federal da Alemanha, Senhor Presidente da República da Guiné-Bissau, Distintos representantes das Igrejas e Religiões do Mundo, Caros amigos,

é significativo - para mulheres e homens de diferentes religiões, que pensam na paz - estar em Berlim. Nesta cidade, a história não se cala. Fala de grandes dores, as do conflito mundial, do totalitarismo, da Shoah, da guerra fria. 

Os próprios deportados sabiam como era decisivo recordar a guerra. Abram Cytryn, judeu do terrível gueto de Lodz, morto em Auschwitz, e alma de poeta, explica por que razão começou a escrever a história desse recinto de dor: "Vivendo no inferno do gueto", diz ele, "e vendo o sangue dos meus irmãos a pingar, decidi pôr no papel o meu testemunho... Gostaria que o sangue respingasse no papel para transmitir a memória desses anos impiedosos às gerações futuras.

O sangue derramado por esses anos impiedosos, as vozes das testemunhas, consolidaram a cultura da paz, fundada no horror da guerra e na consciência do mal que os homens podem fazer na guerra. Esta cultura de paz tornou-se também, sobretudo na Europa do Leste, uma força pacífica que derrubou a violência do poder. 

 O passar do tempo, o desaparecimento da geração da guerra e das testemunhas da Shoah levaram a que o horror da guerra fosse esquecido. Até à sua reabilitação como instrumento de resolução de conflitos ou de afirmação dos próprios interesses. A guerra é a negação do destino comum dos povos. É a derrota da política e da humanidade. Ressuscita pesadelos e infernos da história, hoje piores devido ao poder das armas e das tecnologias, desconhecidas no passado.

 Berlim, no entanto, também diz muito noutro sentido. Renovada como capital da República Federal, fala alto das grandes conquistas da liberdade: a reunificação da Alemanha, o fim da divisão do mundo em blocos, a solidariedade e o valor da democracia, a aceitação de pessoas de outras origens. Aqui, a herança da guerra durou quase meio século para além do ano de 1945, tão difícil para esta cidade. Foi apagada - sublinho - não com outra guerra, mas com um movimento, que foi a pressão pacífica do povo (que se sacrificou), da diplomacia, do diálogo, da ousadia. A ousadia de 1989!

De certa forma, o ano de 1989 na Europa veio derrubar o paradigma de 1789, segundo o qual uma verdadeira revolução é sempre feita através da violência. Berlim conta como se pode deitar abaixo o Muro com as próprias mãos e fazer renascer uma cidade livre e unida. Depois de 1989, uma geração esperava um mundo mais unido, pacífico e democrático. Mas algo não correu como esperado, talvez devido ao modo providencialista de acreditar no processo de globalização, que é tão económico.

 A globalização dos mercados não foi acompanhada pela globalização da paz, da democracia, do espírito. As tensões, as oposições, as fracturas reagiram ao mundo global. Não vou fazer uma retrospetiva dos últimos trinta anos. Mas a situação internacional atual está longe das esperanças da queda do Muro. Marcada, não só por novos muros, mas por conflitos cruéis. Por culturas de muro e de conflito. 

 Sabemos muito sobre o mundo contemporâneo. Não nos falta informação, de facto. Mas, como diz o filósofo coreano Byung-Chul Han, "a informação por si só não explica o mundo". Não é fácil compreender e agir. É preciso encontrar, até mesmo a dor. Os gritos de milhões de mulheres e homens que sofrem com a guerra, com as crises que ela desencadeia, com a catástrofe ecológica, com o abandono a que são condenados, chegam até nós. Estes gritos explicam o lado doloroso do nosso mundo.

Não se consegue libertar a humanidade da guerra: na Ucrânia, em África e em muitas outras partes do mundo. As guerras, as crises violentas multiplicam-se. De alguma forma, embora acreditemos que estamos a reagir ou a agir, somos prisioneiros, embora sem o dizer. Devido aos poderosos armamentos e tecnologias de guerra, os conflitos tornam-se muitas vezes eternos, não encontram saída, mesmo com a vitória de uma das partes. Duram e, entretanto, consomem povos, vidas e o tecido de países inteiros. Os refugiados inundam o mundo, expostos a um sofrimento incrível. 

 Países poderosos, chefes de governo, gigantes económicos, vêem-se impotentes perante este cenário, ou subjugados por uma lógica que outros, muitas vezes, puseram em marcha, sem vergonha de praticar a agressão. As guerras são como os incêndios: há quem os inicie irresponsavelmente, mas no fim ninguém os controla e eles desenvolvem-se pela sua própria força, queimando por vezes os agressores e os atacados, mas também países terceiros.

Estas palavras não são inspiradas por um romantismo pacifista, mas pela experiência histórica dos conflitos do século passado e deste, pelo encontro com as feridas dos povos, pelo acolhimento dos refugiados, verdadeiras testemunhas e embaixadores da dor da guerra. 

Como mulheres e homens de religião, há anos que nos movemos na difícil encosta entre a guerra e a esperança de paz. Demos os primeiros passos em Assis, em plena guerra fria, em 1986, quando João Paulo II convocou as religiões a rezar pela paz. No dia 1 de setembro de 1989, cinquenta anos após o início da Segunda Guerra Mundial, estávamos em Varsóvia, enquanto o Muro parecia ainda estar de pé, para proclamar juntos, como crentes do Leste e do Oeste, do Sul: War never again! Nunca mais uma guerra destas! Basta das cosequências da guerra mundial!

De ano para ano, acompanhámos os conflitos, procurámos caminhos para a paz (conseguindo mesmo encontrá-los em alguns países), trabalhámos para a cultura do diálogo e do encontro, conscientes de que a paz está no centro das grandes tradições religiosas. No ano passado, perante os líderes religiosos reunidos no espírito de Assis, em Roma, o Papa Francisco disse: "Aqui se ouve a voz dos que não têm voz; aqui se funda a esperança dos pequenos e dos pobres: em Deus, cujo nome é Paz". As religiões não podem deixar de ouvir a voz dos que não têm voz e tornar-se a sua voz.

A história das religiões nem sempre foi expressiva desta paz, no entanto - ao longo destes anos - grandes figuras de espiritualistas, pessoas de diálogo, mediadores audazes e pacientes, homens sábios, acompanharam-nos. Não deixámos, todos os anos, de nos encontrar, de cidade em cidade, para invocar a paz, mesmo na diversidade das tradições religiosas, para impedir que o sonho da paz seja enterrado. Não o é, porque está inscrito nas fibras profundas do ser humano, na fé dos crentes, nos desejos dos desesperados.

 Agradeço a todos os que hoje se juntam a este encontro de diálogo, de paz, de oração. As nossas visões não têm de coincidir, nem as nossas leituras da complexa realidade do nosso tempo: não é isso que conta! No entanto, há um ponto decisivo, expresso no título do nosso encontro, a ousadia da paz. Nesta situação difícil, a prudência, embora necessária, já não é suficiente, nem o realismo ou a lealdade, embora decisivos: o que é preciso é a ousadia, que nos leva a ultrapassar o muro do impossível diante do qual parámos. 

 Um homem que se consumiu com a Escritura, Walter Brueggemann, escreve: perante a guerra "é-nos difícil acreditar na possibilidade de uma nova realidade. O futuro parece-nos cansado, atroz, uma réplica do passado".

A ousadia da paz significa acreditar que existe uma alternativa. Que é preciso investir mais no diálogo e na diplomacia, na procura de soluções justas e pacíficas. Falar de paz não é inteligência com o agressor ou vender a liberdade dos outros, mas uma consciência profunda e realista do mal da guerra para os povos. Ousadia da paz, que é perseguir visões alternativas sem se resignar aos binários obrigatórios da realidade. A ousadia da paz, para nós crentes, é a invocação da paz e a confiança em Deus que tem desígnios de paz para guiar a história.

Como dizia Václav Havel, um homem que conduziu o seu país à liberdade: "a política não pode ser apenas a arte do possível, isto é, da especulação, do cálculo, da intriga, dos acordos secretos e dos enganos utilitários, mas deve ser a arte do impossível, isto é, a arte de se tornar melhor a si próprio e ao mundo". 

 

 Os recursos espirituais, os do humanismo, participando na dor de tantos pela guerra, geram audácia para uma paz verdadeira e justa que já não pode ser negada a demasiados povos.